Cyberbullying e ataques a escolas no Brasil: estranha coincidência?
Recordo-me vagamente que ainda em tenra infância aterrorizava-me a figura de um colega de escola, integrante de série mais antiga. O sentimento derivava do fato de que, de forma sistemática, aproveitava-se da vantagem física que a diferença de pelo menos 12 meses de idade garantia-lhe para deixar no ar uma permanente possibilidade de vir a espancar-me gratuitamente, a qualquer momento, em qualquer lugar e sem uma motivação aparente.
Anos mais tarde, refletia sobre a origem desse comportamento e algumas perguntas vieram-me à mente: seria revide de uma ameaça assimétrica anteriormente sofrida no seio familiar ou na vizinhança? Seria um comportamento inato, um desejo incontrolável de humilhar o outro trazido desde o ventre materno?
Talvez a educação familiar que recebera, consciente ou inconscientemente, possar ter causado um sentimento de inferioridade substituível, de forma frugal e fractária, pela imposição a terceiros de sua superioridade física?
Essas memórias da infância e suas indagações consectárias remetem a uma famosa discussão filosófica do século XVIII sobre a natureza humana. Jean-Jacques Rousseau é frequentemente lembrado na defesa de que o ser humano seria naturalmente bom e tornar-se-ia mal por corrupção da sociedade, por assertivas como a de que “o homem nasce livre, e por toda a parte encontra-se a ferros”, encontrada em obras como “O Contrato Social” e o “Discurso sobre a Origem e os Fundamentos da Desigualdade entre os Homens”.
Thomas Hobbes, ao contrário, ao defender a necessidade do contrato social, baseava-se no argumento de que, no estado de natureza, o ser humano é movido por instintos básicos e pelo desejo de autopreservação, que se contrapõe à convivência naturalmente pacífica e harmônica.
Daí a necessidade de uma autoridade soberana capaz de garantir a a ordem e paz e evitar o estado de “guerra de todos contra todos” descrito no seu “Leviatã”.
Para o que sofre as consequências da agressão do outro pouco importa a origem do mal do ser humano. Interessa, sim, que o Estado apresente soluções para a conduta violenta do agressor e garanta a todos a merecida e indispensável segurança pública, seja na escola, no trabalho, no trânsito ou mesmo a segurança privada em nossas relações familiares.
Sabemos, todavia, que são menos raros do que gostaríamos o testemunho ou o sofrimento vivenciado em decorrência de atos de violência física ou psicológica, intencionais e repetidos, praticados individualmente ou em grupo com o objetivo de intimidar ou agredir outro indivíduo ou grupo de indivíduos incapazes de se defender e que afetam gravemente a qualidade de vida e a saúde.
Condutas como essas são costumeiramente definidos pelo termo “bullying” e podem ocorrer de várias formas, como agressões físicas, insultos verbais, exclusão social, entre outros. Eu não me recordo como a chamávamos na minha época escolar, até porque os estudos sobre o tema vieram a evoluir significativamente desde a década de 80, mas certamente tais indivíduos de comportamento agressivo e intimidatório eram por todos conhecidos como “valentões” ou “brigões”.
Com o advento das novas tecnologias de informação e comunicação, esse tipo de comportamento agressivo intimidatório e sistemático migrou para a rede mundial de computadores, onde se passou a denominar de cyberbullying e, aparentemente, recrudesceu. Enquanto o bullying é uma conduta localizada no tempo e no espaço, o cyberbullying não observa o espaço-tempo, torna-se permanente, ubíquo, atemporal.
A conscientização sobre o bullying tem crescido ao longo dos anos, e muitos países têm implementado políticas e programas para combater e prevenir esse tipo de comportamento. No Brasil, a Lei n. 13.185/2015, também denominada “Lei do Bullying”, por exemplo, instituiu o Programa de Combate à Intimidação Sistemática (Bullying) e estabeleceu diretrizes para a prevenção e combate a práticas de intimidação sistemática em todo o território nacional.
Conforme a definição legal, o bullying se caracteriza como todo ato de violência física, verbal, moral, sexual, social, psicológica, virtual, entre outras, de forma intencional e repetitiva, que ocorre sem motivação evidente, praticado por indivíduo ou grupo, contra uma ou mais pessoas, com o objetivo de intimidá-la ou agredi-la, causando dor e angústia à vítima.
Apesar da Lei do Bullying não trazer previsão de pena, o que poderia trazer a impressão de que a conduta não se revelaria como um bem jurídico de relevo tal a merecer proteção penal, o fato é que a intimidação sistemática traz consequências para a saúde mental e física das vítimas, o que pode incluir depressão, ansiedade e, em casos, extremos, levar ao suicídio e a homicídios.
Aliás, apesar de sua publicação desde 2015, os efeitos da lei do bullying parecem ainda não terem sido adequadamente notados, uma vez que, nos últimos 20 anos, o Brasil teve mais de 20 casos de ataques a escolas, alguns com facas, outros com armas de fogo, muitos deles praticados por alunos ou ex-alunos das escolas, sob a motivação de comportamento reativo ao bullying sofrido, inclusive anos antes.
A incidência desses ataques aumentou a partir de 2019, alcançando ápices em 2022 e 2023, que já registra o 9º caso. Outro dado importante é que a grande maioria desses crimes têm ocorrido em Estados localizados nas regiões do Sul e do Sudeste do país, que possuem maior desenvolvimento socioeconômico e, portanto, maior facilidade de acesso às novas tecnologias de informação e comunicação. Seria uma mera coincidência?
O fato de muitos dos usuários de internet terem acesso ilimitado à rede mundial de computadores, sem a devida capacidade de entender determinados conteúdo e sem a devida fiscalização ou monitoramento, seja por parte dos familiares ou de cuidadores em geral, talvez seja um indicador a relacionar o aumento do cyberbullying e os ataques a escolas nos últimos anos.
Indivíduos que já possuem sentimentos de isolamento, ressentimento ou raiva podem encontrar, no ciberespaço, comunidades que reforçam e validam suas visões distorcidas. Em vez de serem expostos a perspectivas diversificadas e equilibradas, esses indivíduos podem se enclausurar em “bolhas” online que amplificam seus preconceitos e hostilidades.
Além disso, a natureza impessoal da comunicação online pode exacerbar sentimentos de desconexão. A falta de interação face a face, com suas sutilezas não verbais e empatia inerente, pode levar a mal-entendidos e despersonalização, que pode resultar em ataques verbais mais frequentes e intensos, já que a empatia tende a ser reduzida quando não se vê diretamente o impacto das palavras no outro.
Desta forma, urge que se faça a integração da educação digital nas escolas, nos termos da Lei nº 14.533, que instituiu a Política Nacional de Educação Digital em nosso país. Referida medida pode e deve ser buscada mediante aplicação de políticas públicas e privadas, conforme o caso, estabelecimento de parcerias com empresas de tecnologia e investimentos em projetos de intervenção adequados à realidade circundante.
As escolas precisam implementar programas que prevejam medidas de prevenção ao bullying e ao cyberbullying, o que inclui o treinamento de professores, palestras para alunos e a adequação do ambiente escolar para atender a diversidade de nossas crianças e adolescentes, incluindo-se o necessário apoio psicológico.
O monitoramento do conteúdo pelas plataformas de mídias sociais e consequente remoção daquilo que for considerado como odioso ou violentos, é uma abordagem que pode ser implementada e maior eficácia terá se puder ser desenvolvida mediante cooperação com as autoridades.
Não custa lembrar que segurança pública é direito e responsabilidade de todos, não apenas dos órgãos de aplicação da lei. O problema do bullying e do cyberbullying é real, urgente, bate à nossa porta e não pode mais ser ignorado pelas autoridades, familiares e sociedade em geral.
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