Política Criminal para Deepfakes no Metaverso e a “Cibervitimização”
O metaverso pode ser caracterizado como uma plataforma virtual tridimensional emergente que engloba uma variedade de tecnologias, incluindo inteligência artificial (IA), realidade virtual (RV), realidade aumentada (RA) e blockchain e que possibilita interações multidimensionais dos usuários. Sua natureza fluida e dinâmica cria um novo universo, daí o termo “meta”, onde é bastante comum uma confusão mental entre o real e o virtual.
Não é difícil imaginar que um ambiente com tais peculiaridades é particularmente suscetível ao uso malicioso de deepfakes, o que evidencia seu potencial para a “cibervitimização”. Dentro do metaverso, os deepfakes seriam como criaturas camaleônicas, em constante mudança de aparência, a tornar complexa a tarefa de distinguir entre o real e o ilusório, dentre de uma nova realidade já complexa.
Deepfakes são mídias digitalmente alteradas, geradas por meio de técnicas avançadas de aprendizado de máquina (machine learning), com impressionante realismo e grande potencial para uso indevido. Costumam ser criados para alterar a percepção da realidade, com diversas finalidades, algumas legítimas, como arte e entretenimento, e outras não, como para favorecimento político, ganho financeiro, extorsão, satisfação da lascívia, dentre outros. Por um lado, empoderam os usuários com uma liberdade criativa sem precedentes; por outro, criam vias para engano e crimes cibernéticos.
Por meio de deepfakes, alguém mal-intencionado pode se passar por um usuário legítimo da rede e obter acesso a serviços que exigem personificação, realizar invasão de privacidade e a disseminação de notícias falsas, com prejuízos significativos a indivíduos, grupos e organizações.
Com o objetivo de identificar o uso ilícito de deepfakes no metaverso, Stavola e Choi (2023), apresentam um estudo que foca nos desafios impostos pela novel tecnologia, na compreensão do criminoso, das formas pelas quais se beneficiam e no impacto que isso exerce sobre as vítimas de cibercrimes. A partir de estudos como a teoria das atividades rotineiras (1979) e a teoria da criminalidade de Eysenck (1977), propõem um conjunto de soluções e estratégias práticas para mitigar a vitimização relacionada a deepfakes no metaverso.
A teoria das atividades rotineiras foi desenvolvida por Lawrence Cohen e Marcus Felson, em 1979, no âmbito da criminologia, para explicar a ocorrência de crimes baseados em ações sociais habituais. Segundo a teoria, para que um crime ocorra, três elementos devem convergir no espaço e no tempo: um infrator motivado, um alvo adequado e a ausência de um guardião capaz. Esses três elementos estão teoricamente presentes no metaverso.
Uma vez que se trata de um novo local de atuação, pouco explorado, sem a devida regulamentação, o guardião capaz quase não existe. A ausência de legislação, o anonimato e as necessidades individuais motivam o infrator. O novo universo atrai curiosos em grande quantidade, que se tornam vítimas suscetíveis de serem exploradas, dada a ausência do guardião capaz e de uma baixa capacidade de autodefesa.
A teoria da criminalidade de Hans Eysenck (1977), por sua vez, propõe que a criminalidade é influenciada por traços de personalidade (aspectos biológicos e psicológicos, que acreditava serem em grande parte hereditários), com especial enfoque em três dimensões: a extroversão, o neuroticismo e o psicoticismo, que são associadas a comportamentos criminosos. Além disso, a teoria enfatiza o papel do condicionamento e da socialização na formação do comportamento, sugerindo que indivíduos com certos traços de personalidade podem ser menos suscetíveis a aprender com punições e normas sociais, o que elevaria a probabilidade de se envolverem em atividades criminosas.
Ao considerar que 25% da população mundial sofre de algum transtorno mental ou neurológico, e que tais indivíduos estão dentro do metaverso por meio de avatares, conhecer tais dados podem servir como um bom parâmetro para a seleção de medidas necessárias ao enfrentamento da vitimização por crimes de deepfakes no metaverso.
Dentre os principais resultados do estudo de Stavola e Choi (2023), destacamos a idade dos infratores, que seria em torno de 20 anos, e a motivação baseada em necessidades sexuais ou econômicas, assim como de baixa realização social. Além disso, concluem que o anonimato, decorrente do uso de avatares e deepfakes, tende a diminuir a culpa e facilitar a prática de crimes como cyberbullying, cyberstalking e violação de privacidade. Em relação às vítimas, os principais alvos no metaverso são adolescentes, idosos e mulheres.
No tocante aos guardiães, apesar de não impedirem a ocorrência de crimes cibernéticos, contribuem para sua mitigação. Deste modo, sugerem que sejam aplicadas medidas de proteção de privacidade, políticas de ética no metaverso, treinamento de autoridades e sistemas de autenticação “Real ID”, para excluir a capacidade de uso de tecnologia deepfake. Dentre as medidas relacionadas à saúde mental das vítimas, dão relevo à assistência legal para todos os ciberrimes e terapia psiquiátrica para vítimas de ofensas sexuais. Por fim, destacam a necessidade de leis e de políticas específicas para o enfrentamento dos crimes cibernéticos no metaverso, além da adoção de programas de recuperação mental para as vítimas.
Sugerem a necessidade de estabelecer uma definição clara de contas e proprietários no metaverso e implementar um sistema de monitoramento regular para exibir a identidade do usuário. Além disso, apontam a importância da educação em ciberética, aperfeiçoamento legislativo e da assistência legal, financeira, de aconselhamento e terapia psiquiátrica para as vítimas, mediante a criação de um programa de apoio especializado. Destacam a necessidade de uma política de conscientização pública sobre deepfakes, incluindo o metaverso, e um investimento em tecnologia capaz de detectar faces manipuladas.
Naturalmente, o estudo de Stavola e Choi (2023) apresenta algumas limitações, como o número reduzido de entrevistados (apenas 8) e respectiva localização geográfica (Coréia do Sul), a indicar um possível viés cultural e tecnológico. Acrescente-se a isso o desafio bastante comum de ter que lidar com a rápida evolução tecnológica, o que torna muito difícil que dados empíricos e descobertas, ainda que de maior abrangência e com validade conferida por outros estudos, perdurem por longos períodos.
Pesquisas sobre vitimização frequentemente demandam uma abordagem interdisciplinar, a partir de perspectivas de diferentes campos (como direito, tecnologia, psicologia etc.), o que pode ser particularmente complicado, ainda mais dentro de uma temática ainda mais específica como a de crimes por deepfake dentro do metaverso.
No Brasil, por exemplo, considerado apenas o aspecto jurídico, nem mesmo o Marco Civil da Internet apresenta uma solução adequada ao tema. Ainda há uma carência muito grande de pesquisas empíricas e teóricas que possam subsidiar uma regulamentação das questões que envolvem o metaverso, a exemplo da atribuição para a investigação, das estratégias de policiamento e das políticas criminais mais adequadas de prevenção, de conscientização e de educação, apenas para ficar no âmbito de atuação policial.
Apesar da importância da discussão trazida por Stavola e Choi (2023) para a compreensão e abordagem da vitimização por deepfake no metaverso, devemos reconhecer que o impacto do trabalho é moderado por limitações, como a falta de dados empíricos extensos, a paisagem tecnológica em rápida mudança, a complexidade da implementação prática e a necessidade de uma colaboração interdisciplinar mais abrangente.
Pesquisas futuras devem se concentrar nessas e outras áreas, com ênfase na coleta de dados empíricos, no monitoramento de avanços tecnológicos, na simplificação de estratégias de implementação e no fomento da colaboração interdisciplinar. Além disso, é importante explorar o panorama legislativo em diferentes jurisdições, como o Brasil e outros países com diferentes percepções culturais e tecnológicas, com o fito de obter uma compreensão mais abrangente do fenômeno e do desafio global representado pelos deepfakes no metaverso em busca de uma política criminal adequada ao enfrentamento.
Referências
Cohen, L. E., & Felson, M. (1979). Social change and crime rate trends: A routine activity approach. American Sociological Review, 44(4), 588-608. doi:10.2307/2094589
Eysenck, H. J. (1977). Crime and personality (3rd ed.). London: Routledge & Kegan Paul.
Stavola, J. & Choi, K. (2023). Victimization by Deepfake in the Metaverse: Building a Practical Management Framework. International Journal of Cybersecurity Intelligence & Cybercrime: 6(2). DOI: https://doi.org/10.52306/2578-3289.1171
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