Crime, Investigação e Castigo: dos Mundos Virtuais ao Metaverso
Em outubro de 2008, uma insuspeita professora de piano de 43 anos de idade, residente no sul de Miyazaki, no Japão, após um acesso incontrolável de raiva decorrente de um divórcio ocorrido sem qualquer aviso prévio, decidiu abreviar a vida de seu cônjuge, que vivia em Sapporo, a cerca de 1000 quilômetros de distância de sua residência (McCurry, 2008).
Até aí nada de tão incomum, apesar do índice de homicídios entre japoneses registrar apenas 654 casos em 2008 (Country Economy, s.d.), o que colocava a terra do Sol nascente entre os 10 menores do mundo naquele ano (UNODC, 2014).
A história chamou a atenção e ganhou o mundo, todavia, em razão do método utilizado pela solitária professora. Para alcançar seu intento, ela usou o login e a senha de seu marido virtual, acessou o mundo virtual onde seus personagens compartilhavam confidências amorosas e assassinou friamente o personagem dele.
Logo que percebeu a morte de seu personagem, o ex-marido virtual denunciou o caso à polícia que efetuou a prisão da suspeita de acesso ilegal a sistema computacional e manipulação ilícita de dados, cujas penas poderiam chegar, à época, a 5 anos de prisão e/ou multa equivalente a 5 mil dólares.
Ao amigo leitor desta coluna pouco afeto aos mundos virtuais, é importante esclarecer que uma personagem ou avatar precisam ser cuidadosamente construídos ao longo dos anos dentro desses ambientes que emulam um verdadeiro universo, com características e regras próprias.
Esse processo implica em investimento de tempo de qualidade, sentimental e financeiro, o que representa, muitas vezes, uma vida inteira de interações ao ponto de caracterizá-lo como algo único, distinto e, por vezes, infungível. Daí que, há 15 anos, o Japão já possuía legislação apta à proteção de tais bens jurídicos e consequente punição de condutas como a noticiada acima.
É preciso que se diga que mundos virtuais são ambientes tridimensionais (3D) e imersivos que proporcionam a qualquer pessoa com acesso ao servidor específico onde está disponível a realização de variegadas atividades, como experiências sociais, de trocas, comércio e de aprendizagem em geral. Milhões de pessoas efetivamente conectam-se diariamente a tais ambientes para a realização de suas interações virtuais. Exemplos notáveis de mundos virtuais são Second Life e World of Warcraft.
Para muitos indivíduos, o mundo virtual é onde passam a maior parte do tempo, onde exercem atividade laboral, lucrativa ou de mera diversão. Nesse sentido, podem representar uma economia própria, uma vez que possuem sistemas de moedas digitais e alguns até mesmo permitem trocas de bens entre seus participantes. Muitos dos seus usuários vivem nesses ambientes um sentimento de pertencimento não encontrado fora dali, como se aquele fosse o local em que efetivamente houvessem justificados seus papeis na sociedade.
Ocorre que em tais ambientes, assim como no mundo real, também podem ocorrer (e de fato ocorrem) crimes, a exemplo de furtos de senhas, de identidade e de dados, fraudes financeiras, tráfico de drogas, lavagem de ativos, pirataria, aliciamento de crianças, trocas de imagens de abuso sexual, extorsões, estupros virtuais, ciberterrorismo, associações criminosas, dentre uma infinidade de condutas ilícitas previstas em legislação de natureza penal.
Um indivíduo que fosse proprietário de personagem detentor de muitos bens virtuais ou raros poderia perfeitamente ser alvo de extorsão mediante sequestro no mundo real, uma vez identificado pessoalmente pelos criminosos cibernéticos, para ser coagido a transferir essa riqueza para outros personagens do mundo virtual, que em seguida poderiam vender para terceiros em troca de criptoativos.
Essa hipótese tornou-se fática em 2009, quando um tribunal chinês sentenciou um gangster a 3 anos de prisão por extorquir bens virtuais. Segundo Goodman (s.d.), a vítima foi coagida em um cibercafé após suspeitos notarem seu grande saldo na conta QQ-Tencent.
No filme de ficção científica “Jogador Nº 1” (Spielberg, 2018), baseado no romance homônimo de Ernest Cline, a cena se repete quando o protagonista Wade Watts, durante o uso de seu avatar Parzival, revela pequenos detalhes que levam a sua identificação no mundo real com sérias consequências em sua vida.
Algumas condutas praticadas diretamente contra o avatar, porém, poderiam ser juridicamente discutidas quanto à tipicidade penal. Por exemplo, um estupro de um avatar, dentro de um mundo virtual, estaria perfeitamente descrito no art. 213 do Código Penal? Certamente é algo que não apresenta respostas fáceis e demandaria amplo debate. E se há questões em aberto para mundos virtuais, o que não se dirá no que concerne ao metaverso?
Como devemos saber, a ideia do metaverso ganhou destaque recente com o crescente interesse em realidade virtual (VR), realidade aumentada (AR), e tecnologias blockchain, que têm o potencial de criar uma experiência mais imersiva e interconectada.
O metaverso, propõe a integração de múltiplos ambientes digitais interconectados, englobando mundos virtuais, aplicações, e plataformas, no que poderia ser resumido como uma espécie de “internet” dos mundos virtuais. A ideia é que os usuários possam mover-se e interagir livremente entre diferentes mundos e plataformas, levando consigo sua identidade, ativos e informações.
Nesse sentido, o metaverso pode ser usado para trabalho, educação, comércio, socialização, e muito mais. Porém, não há uma tecla de desligar ou mesmo para pausar esse novo ambiente. O universo transcendente que ele representa e do qual cada um dos avatares passa a fazer parte continua sua marcha independentemente de cada interesse.
Enquanto no mundo virtual as interações estavam limitadas a um determinado ambiente, com regras próprias, no metaverso, tudo o que é ação ou omissão tem efeito contra todos, de uma forma que o real e o virtual estão de fato interconectados e se afetam mutuamente.
Um avatar do metaverso é uma individualidade de fato que não está limitado a regras específicas de um determinado mundo virtual, mas da própria sociedade em suas múltiplas jurisdições. Dada a natureza global e descentralizada do metaverso, determinar a soberania de um Estado e qual o local deve poder determinar a aplicação da lei pode ser desafiador.
Novos modelos de governança e colaboração entre diferentes jurisdições precisam ser pensados para que o direito possa ser adequadamente estabelecido nas diferentes sociedades, sejam elas democráticas ou não.
Caso a concepção de metaverso ganhe força e expansão, novas ferramentas e técnicas especializadas deverão emergir por parte dos órgãos de aplicação da lei, para dar conta das ameaças digitais que já assombravam a noção de policiamento nos mundos virtuais, dada a natureza virtual e frequentemente criptografada do ambiente.
Do mesmo modo que no romance “Crime e Castigo”, de Dostoiévski, onde a personagem principal Raskólnikov acredita inicialmente que pode escapar da punição e viver anonimamente com seu crime, no metaverso, sua natureza virtual e complexidade permite um grau de anonimato, onde os criminosos podem sentir que estão protegidos por seus avatares e podem escapar das consequências.
Para que não haja crimes sem castigo no metaverso, certamente haverá cada vez mais a necessidade de treinamento especializado para uma investigação cibernética no metaverso, maior cooperação internacional e harmonização das diferentes legislações globais, inclusive para que se possa melhor definir o local do crime cibernético e a competência para a investigação, processo e julgamento.
Fontes consultadas:
Country Economy. (s.d.). Homicídios no Japão. Recuperado de https://pt.countryeconomy.com/demografia/homicidios/japao
Dostoiévski, F. (2007). Crime e castigo. Editora São Paulo.
Goodman, Marc (s.d.). Crime and Policing in Virtual Worlds. united nations interregional crime and justice research institute (UNICRI). https://f3magazine.unicri.it/?p=360
McCurry, J. (2008, October 24). Japanese woman faces jail over online ‘murder’. The Guardian. https://www.theguardian.com/world/2008/oct/24/japan-games
Spielberg, S. (Diretor). (2018). Jogador Nº 1 [Filme]. Warner Bros. Pictures; Amblin Partners; Amblin Entertainment; Village Roadshow Pictures; De Line Pictures; Farah Films & Management.
UNODC (2014). 2014 Global Homicide Book. Disponível em: http://www.unodc.org/documents/gsh/pdfs/2014_GLOBAL_HOMICIDE_BOOK_web.pdf. Acesso em 28 de setembro de 2017.
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